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21 Dez 2021

Entrevista a Paulio Correia: “Com a canábis consigo estar mais distraído, rir-me mais, não sofro tanto”

Aos 46 anos, depois de um passado de dependências e dois acidentes que o deixaram com sequelas graves para o resto da vida, Paulo Correia encontrou na canábis não só a porta de saída para o álcool e a heroína como também o alívio para as dores que o atormentam diariamente, amenizando um pouco o seu sofrimento constante.

Texto e fotos: Laura Ramos
 

Paulo Correia talvez represente aquelas pessoas que não têm igualdade de oportunidades, logo à nascença. O segundo mais novo de sete irmãos, cresceu num bairro social em Espinho, numa família com poucos recursos e um pai alcoólico, que lhe batia praticamente todos os dias. Aos 10 anos, o pai morreu, e, sem grandes alternativas ou vontade de ir à escola, começou a trabalhar. Aos 13 anos foi contratado pela Soares da Costa, uma das maiores construtoras do país, e aí começaram novos problemas: álcool, drogas, HIV e dois acidentes que lhe conferiram 80% de incapacidade aos 25 anos. Presença assídua em conferências sobre canábis, incluindo todas as edições da Cannadouro, Paulo garante que foi a canábis que o salvou. Fomos a Espinho conhecê-lo melhor e perceber como a canábis o tem ajudado ao longo da vida.
 

Como é que começaram os seus problemas de saúde?

Os meus problemas de saúde começaram quando me meti nas drogas e troquei seringas com o meu irmão e várias pessoas. Já me tinham mandado repetir análises em 95 ou 94 e eu não liguei; depois fui internado no Hospital, onde me disseram que tinha HIV. A minha mãe perguntou ao médico se havia algum problema em utilizar as toalhas ou assim, mas não, só objectos cortantes… com o HIV podia estar à vontade, não havia problema nenhum.

 

Onde é que nasceu e cresceu?
A minha mãe veio em 74 de Angola, eu nasci em 75 no Porto, mas vim logo para Espinho. A minha mãe tinha um estabelecimento e vivemos ali no bairro há 13, 14 ou 15 anos.

 

Qual era a profissão dos seus pais?

O meu pai trabalhava na Câmara, no alcatrão. E faleceu devido a isso, a inalar fumos e tudo, ele fumava muito e também bebia, muito... faleceu cedo, aos 43 anos.

 

Que idade tinha quando o seu pai morreu?

Ia fazer onze anos. 

 

Como é que foi a sua infância?

A minha infância não foi nada boa... Tive um padrasto, também... Não me dava bem com ele... Depois uma pessoa começa a reflectir e até era uma boa pessoa, percebe? A minha mãe viveu mais anos com o meu padrasto do que com o meu pai.

 

Quantos irmãos tem?

Éramos sete, duas raparigas e cinco rapazes. Um já faleceu de HIV. Eu estava num hospital e ele estava noutro.
 

Como era a sua vida em família?

O meu pai bebia muito e nós não podíamos brincar... levávamos porrada. Ele nem nos dava um rebuçado, nada... Eu, em criança, nunca tive um brinquedo, os que recebia eram da Câmara, no Natal. Se estragássemos os brinquedos ainda levávamos porrada. 

 

O seu pai bebia todos os dias?

Sim.

 

E a sua mãe, protegia-vos?

Sempre! Até à data de hoje, não tenho nada a dizer da minha mãe, ajuda-me em tudo. Ela sabe que eu fumo... Às vezes chama-me drogado, mas não é... no fundo, ela sabe que é para o meu bem. 

 

O Paulo foi à escola?
Sim, fiz a 4ª classe. Ainda andei no Ciclo, mas faltava mais vezes do que ia à escola.

 

Não gostava de ir à escola?

Não. Queria trabalhar, ter o meu dinheiro, mas ao fim e ao cabo, não era para mim, não é? Entregava-o à minha mãe, com doze anos ou quê, mas depois, quando tinha quinze, já comecei a ficar com muito dinheiro para mim. 

 

Com que idade é que começou a trabalhar?

Com doze anos. Era estofador de automóveis no Manuel Cavadas, aqui na Rua 20. Depois fui para a Soares da Costa, como aprendiz de serralheiro, aos 13. Com 13, 14 anos, já tirava cento e tal contos. Só de prémio tirava vinte e tal contos, tanto como o ordenado, e depois eram horas extra que eu fazia.

 

Mas tinha contrato de trabalho?

Na Soares da Costa tinha contrato.

 

Com 13 anos? Não era considerado trabalho infantil? Não deveria estar na escola...?

Não sei... Eles meteram-me. (Acende um charro).

 

De que maneira é que consome a canábis? É sempre fumada?

É fumada. Não tenho um vaporizador, nunca tentei… mas hei-de comprar um vaporizador, dizem que se sentem melhor os terpenos, tudo... Vou tentar comprar um vaporizador.

 

Tem dinheiro para isso?

Não tenho, mas vou ter de arranjar.
 

Quanto é que recebe por mês?

Recebo de pensão 275,30€. Não dá para nada. Se for comprar um maço de tabaco todos os dias, lá vão os 275€.

 

Mas fuma um maço de tabaco por dia?

Não… Misturo na erva. 

 

Então só fuma canábis…
Praticamente. E tenho lá um vaporizador de óleo de CBD. A Segurança Social tem-me ajudado com a medicação. Eu levo lá os recibos e mandam-me o dinheiro. 

 

A sua mãe ajuda?

Ajuda, ela ajuda. Mas a minha mãe vai fazer 79 anos...
 

E ela importa-se que o Paulo tenha plantas em casa? 

Não, então, quando me roubaram as plantas ela também ficou lixada... no barraco... Ela quando viu como eu fiquei, ai Jesus, andei uns meses que não podia ver o gajo, o meu vizinho, não o podia ver... Quando for para cima, vou-lhe mostrar o meu barraco… O meu bairro, aquilo parece o Aleixo. E por baixo do meu prédio é sempre a “pedrar” pessoas, percebe?

 

Há muito tráfico de droga no seu bairro?

Claro que há. Heroína, coca... e é pessoal que não consome, está só a ganhar dinheiro.

 

E ofereceram-lhe heroína quando o Paulo queria comprar canábis?

Isso, foi. Se quiser comprar heroína ou coca é à porta. 

 

Que idade é que tinha?

Tinha aí quê... eu comecei a fumar canábis também... comecei a beber cedo e depois também fumei. Houve uma pessoa no meu trabalho que me apresentou um charro: "Oh, por que não?"... E eu experimentei e gostei. Depois meti-me no álcool, não é? Bebia muito, sempre bebi muito. Depois é que me meti nas drogas... na heroína. Eu trabalhei nas pontes, no Lindoso e em Ferreira do Zêzere. A minha mãe tinha whisky na loja para vender e eu já roubava garrafas de whisky quando trabalhava na Soares da Costa. E aqueles alentejanos, aquele pessoal trazia garrafões de vinho, e era cada “muleta”, ai Jesus... Eles bebiam cerveja às 10 da manhã e eu comecei a beber também.

 

Acha que há muito consumo de álcool e drogas na construção civil?

Principalmente álcool, há. E mesmo nas praias, ainda há um bocado vi, não há polícia. Se é proibido, na via pública, consumir álcool...
 

O álcool consome-se em todo o lado, é comum, não é?

O álcool é a droga mais acessível que há para uma pessoa. Muita gente diz que não, mas é a droga mais barata que há. A minha mãe uma vez disse-me para me meter no álcool, que saía mais barato. Mas, no fundo, ela sabe que o álcool não é nada bom... 

 

Mas e a heroína, então, como é que aconteceu? Já bebia álcool, com que idade é que começou a consumir heroína?

Aí com 16, 17 anos... Fumada, mas fumei e comecei logo a injectar. Tinha um irmão que estava no Porto, depois veio para casa da minha mãe e eu partilhei agulhas com ele... e ele já devia estar infectado... foi aí. E não foi só com ele, foi com mais pessoas que partilhei seringas. Na altura, não havia essas carrinhas, nem nada, uma pessoa tinha de ir à farmácia e como estava a ressacar, queria era desenrascar-se. Eu até com água do rio "mandei".

 

Mas entretanto, teve um acidente e ficou com um problema na perna, não foi?

Sim, tive um acidente de carro, quando trabalhava em Ferreira do Zêzere, na ponte. Eu vinha a dormir, decerto... O meu oficial, não sei se adormeceu, espetou-se contra um poste do meu lado e estive em coma duas semanas, num hospital em Coimbra, depois é que fui transferido para Espinho, para ser operado à perna.  

 

Foi uma recuperação longa?

Não foi muito longa, era novo e recuperei bem. Só que agora meto aqui a mão e parece que sinto uma dor, aqui. Tenho espasticidade, mas é devido à fractura da coluna. 

 

E como é que isso aconteceu?

A coluna foi quando deixei as drogas pesadas... meti-me no álcool, para não consumir drogas, e andava sempre bêbedo. Adormeci em cima de um muro, caí e fui para o Hospital de Espinho, de Espinho fui para o Hospital de São Sebastião, de lá mandaram-me para Espinho, de Espinho mandaram-me para casa embrulhado num lençol, e eu com a coluna fracturada… Disse à minha mãe que não queria ficar em casa, queria ir para o hospital… fui para o Monte da Virgem e só ao fim de duas semanas é que me mandaram fazer uma ressonância magnética. Acusou dois elos na cervical “ralados” e tive que ser operado no São Sebastião. E estive lá um tempo, com os ferros a esticar a medula, para depois ser operado. 

 

Quantos anos tinha?

Tinha 25.

 

Aos 25 anos ficou com sequelas para sempre...

Sim, colei dois elos na cervical. Paralisa-me o lado direito todo, não tenho massa muscular, nem consigo abrir bem a mão. Ando a fazer fisioterapia e não a consigo levantar, não tem força.

 

E espasticidade? 

Sim, muita, na perna. 

 

Como é que depois criou esta relação com a canábis?

Porque eu cheguei a certo ponto e virei-me para mim: "Se continuar no álcool, vou morrer. Se fumar umas ganzas, ando bem e só me faz bem". Alivia-me o stress, as dores, abre-me o apetite e sinto-me muito bem. 

 

Como é que conseguiu deixar o álcool e a heroína?

Foi com a erva. Com o haxixe também. Mas foi com a erva que eu deixei o álcool e as outras drogas. Ia comprar ao bairro, porque não tinha plantas, mas agora já tenho, para mim, para meu consumo, e já não preciso de gastar dinheiro. 

 

O que gostava de dizer a quem tem responsabilidade de legalizar? O Paulo não tem dinheiro para comprar...

Não tenho 150€ para dar por 15 gramas. Onde? Nunca na vida...

 

Onde é que costuma arranjar a sua canábis?

A minha canábis? Sou eu que planto, uns pézitos para mim.

 

Mas sabe que isso é ilegal...

É ilegal, mas tenho que plantar, não tenho culpa de ser ilegal... Tenho é que olhar pela minha vida!

 

E se lhe aparecer a polícia à porta?

Oh, só me vai dar prejuízo! Vai-me levar tudo e vou chegar ao juiz e ele vai-me mandar para casa... Eu não tenho problemas com isso, nunca tive, não sou traficante, é para meu consumo. É pelo meu direito, é para me tratar.

 

O Paulo percebeu então que a canábis lhe faz bem?

Sim, sim, e muito!

 

E quando falou nisso à sua médica, o que é que ela lhe disse?

"Ó Paulo, se vem aqui por causa da canábis, dou-lhe já alta!" E eu fiquei assim... parei. Sou obrigado a ficar dependente dos comprimidos. Vieram-me as lágrimas aos olhos. Fiquei pasmado.

 

Acha que ela não teve empatia pelo seu sofrimento ou acha que ainda não tem informação para perceber que a canábis seria o melhor para si?

Sim, eu acho que ela não deve ter informação ainda. Mesmo com a minha médica de família, ela teve uma reunião com os outros médicos sobre a canábis e disse "Ó Paulo, vou mandá-lo para uma consulta da dor, eles é que tratam disso." E quando fui à consulta da dor a médica disse "Se veio aqui só por causa da canábis, vou-lhe dar alta. Há mais medicamentos para tentar, além do Tramadol e o Paracetamol, vamos tentar e depois vê-se."

 

E como se deu com esses medicamentos?

Mal. Vómitos... Eu ia para o café e parecia que estava todo tolo, todo drogado, não me sentia nada bem. Mesmo no estômago, figadeira, tudo, não me sentia bem. Dores de cabeça, muitas. Não preciso do Tramadol... as dores que eu tinha são as dores que eu tenho, tomando Tramadol ou não, são as mesmas. Com a canábis consigo estar mais distraído, não pensar tanto, alivia-me a dor e consigo rir-me mais, não sofro tanto.

 

Tem outro estado de espírito?

Sim, tenho outro estado de espírito, não tem nada a ver. Quem diz o Tramadol diz o Diazepam, esses medicamentos que eu ando a tomar. 

 

As plantas que tem em casa, sabe o que cultiva? O Paulo escolhe as suas variedades?

Sim, umas com os níveis de THC altos, mas tenho também com CBD, CBN, CBG, terpenos... é erva boa. Não uso químicos, só os fertilizantes, mas depois no fim lavo a terra, nas duas últimas semanas, só com água.

 

Assim sabe o que está a consumir, não é?

Sim, claro, é uma coisa que eu planto e sei o que estou a consumir. Não há cá nada com bicho, com pesticidas... Não meto nenhum pesticida. O insecticida que faço é com Super-Pop e vinagre. E resulta!

 

E agora, aos 46 anos, que objectivos é que tem?

Vou ver se tiro a carta, para ver se compro um carro, porque não vou andar toda a vida de bicicleta. Ando de bicicleta, é raro caminhar, ando mais de bicicleta.

 

O que é que gostava de fazer no futuro, além de tirar a carta?
Gostava de ter um trabalho, para me entreter, um trabalho informático. Consigo mexer num computador, sei enviar e-mails, até tirei um curso do Office, tive aulas de Powerpoint, Excel... Deram-me 79% de incapacidade. Eles disseram 80% e o médico disse: "79%, para o que é, serve". Na altura, era para ver se baixava a renda da casa. Depois, ao tirar o atestado multi-usos, fiquei sem subsídio de férias e de Natal. Agora tenho a pensão de inclusão e não tenho direito. É mais um bocadinho, pouco, mas não tenho direito aos subsídios. E, além disso, foi-me indeferido um complemento para dependência a 100% (eram mais 400€), só por eu estar a viver com a minha mãe... Não me deram! Tinha que estar a viver sozinho para me darem esse dinheiro. Eles fizeram a conta e dá mais do que o limiar de não-sei-quê, da pobreza, ou qualquer coisa assim...

 

E como é que se sente a viver perto do limiar da pobreza?
Sinto-me mal… Sinto-me triste, não tenho alegria na vida. E a minha mãe a sustentar-me, a minha mãe tem 79 anos… é um bocado complicado estar a viver às custas da mãe.

 

Dá-se bem com a sua mãe?

Dou-me bem, mas chateio-a muito... Mas dou-me bem.

 

Sinto muito que tenha tido pouca sorte...

Eu com 25 anos fiquei assim, estou assim há 21 anos... nunca mais fiz nada. Não tenho interesse na vida, só faço a medicação para andar aqui, mas não tenho interesses... Se eu tivesse um trabalhito para me entreter, ganhar o meu dinheiro, para dar algum à minha mãe e não estar ali dependente dela, percebe? Isso custa...

 

O Paulo, já por várias vezes, disse que não tinha razões para viver... Sente-se assim muitas vezes?

Sim, porque eu não procuro uma mulher, também não tenho trabalho, não tenho nada... Quem é a mulher que está para sustentar assim um homem? Eu podia ter uma vida, não é? Mas não tenho. Também é do HIV que eu tenho, toda a vida pensei nisso, não sei... Pouco interesse tenho.

 

Mas tem de arranjar... vai arranjando, no seu dia-a-dia, não é? Vai fazendo a fisioterapia...

Sim, faço a minha fisioterapia, ando de bicicleta, gosto de ir ver o mar... se não estiver lá ninguém, melhor... no mar, se estiver sozinho, melhor.

 



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