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Crónicas

21 Mar 2022

VIAGENS: A Índia e a Canábis sagrada

A planta da canábis cresce de maneira selvagem em várias partes da Índia e é no norte deste país, nos Himalaias, que se acredita ter o seu ponto de origem. A utilização da planta na Índia data de há milhares de anos e a sua história está entrelaçada com lendas fantásticas e ritos religiosos exóticos. 

 

Por Simón Pardo de Donlebún

Tradução de Bárbara Sousa

A canábis é ainda hoje utilizada, tanto por habitantes locais que seguem as suas tradições ancestrais, como por estrangeiros que são seduzidos pelo fumo denso do inconfundível haxixe indiano, o charas. O clima variável e agreste das zonas montanhosas da Índia, de onde se acredita que a canábis começou a espalhar-se pelo planeta, faz com que os exemplares desta espécie tenham uma capacidade espectacular de resiliência e adaptação a diferentes lugares. Talvez isso explique porque é que tem sido capaz de se espalhar tão amplamente pelo globo e porque é que pode ser cultivada em quase qualquer parte do planeta.

 

Tradição, religião e medicina

As primeiras referências que existem sobre o uso da canábis na Índia encontram-se nos Vedas, textos religiosos da religião hindu que têm cerca de quatro mil anos de antiguidade. O termo Veda significa “conhecimento”, no sentido em que nestes textos reside o conhecimento que dá sentido e respostas à própria existência. Num destes textos, o Atbarva Veda, a canábis é mencionada como uma das cinco plantas sagradas e diz-se que um anjo da guarda reside nas suas folhas. De facto, durante certos ritos hindus, esta é lançada ao fogo para derrotar o inimigo e as forças do mal. Os Vedas também se referem à planta como “fonte de felicidade”, “doadora de alegria” e “libertadora”. Quanto à sua origem, um dos mitos conta que um néctar caiu do céu e que dele brotou uma planta de canábis. Contudo, o mito mais conhecido na tradição hindu explica que quando os deuses e demônios agitaram o oceano para obter Amrita (uma espécie de ambrosia, um alimento mágico que concede imortalidade), surgiu a canábis, cujo uso ritual é especialmente consagrado a Shiva. 

 

Embora a canábis esteja principalmente associada a este deus, em cada região da Índia o consumo desta é dedicado ao deus mais reverenciado da determinada área. A ligação entre esta planta e crenças mais profundas desta cultura fazem com que seja respeitada e usada por alguns sectores do hinduísmo, como o vinho é na santa comunhão dos cristãos. Segundo a tradição hindu, a sua utilização conecta-nos a uma influência sobrenatural e confere-nos

poderes. Isto levou à utilização excessiva da substância por parte de religiosos mendicantes. Estes ascetas, chamados Sadhus, procuram a perfeição moral através da austeridade e da renúncia a posses e apegos emocionais. Vivem longe do mundo material, subsistindo apenas das doações de alimentos que as pessoas lhes fazem, pois são considerados como representações dos deuses na terra, homens santos. É comum vê-los a vaguear sozinhos, cobertos de cinza, vestindo pouca roupa e usando uma bengala rudimentar, pedindo esmola ou fumando charas em honra de Shiva. Para isso, invocam o seu deus antes de começarem a fumar: "Bom Shiva!", "Bom Shankar!" "Bom bolenath!". Estas são algumas das palavras usadas por estas pessoas peculiares e nunca são esquecidas por aqueles que têm a oportunidade de testemunhar e até de participar nestes ritos.

 

Também temos conhecimento sobre o uso milenar da canábis a partir dos textos antigos da Ayurveda. É um sistema de medicina tradicionalmente utilizado na Índia, principalmente pelos hindus, embora outras religiões minoritárias também façam uso deste método. O sistema médico da Ayurveda baseia-se no conceito de equilíbrio entre três elementos (doshas) que compõem o corpo humano: Vata (ar), Pitta (fogo) e Kapha (água e terra). O desequilíbrio entre os três doshas causa doença e embora neste sistema a canábis seja recomendada para certos problemas de saúde, o seu uso excessivo prejudica o intelecto, o equilíbrio hormonal e o equilíbrio mental.

 

A chegada do estrangeiro

Apesar de existirem vários métodos de consumo da canábis na Índia, os mais comuns são fumar charas no tradicional cachimbo indiano, o chillum, e beber bhang lassi ou bhang thandai, bebidas que contêm folhas e flores. O chillum é um cachimbo cônico feito de barro cozido e é utilizado tanto por consumidores comuns como por Sadhus. É fácil encontrar estes cachimbos para venda em qualquer mercado na Índia, contudo, com a chegada de turistas estrangeiros, o mercado dos chillum passou por uma grande evolução técnica e estética. O processo de fabrico foi aperfeiçoado e hoje em dia podemos encontrar artesãos europeus que vendem as suas peças exclusivas por várias centenas de euros.

A melhoria dos chillums não foi a única consequência da chegada de estrangeiros à Índia. Os métodos de extracção de charas e o seu preço também foram influenciados. Como resultado, podemos encontrar qualidades de haxixe nunca antes imaginadas na Índia, a preços exorbitantes para uma sociedade com poucos recursos económicos.

O método tradicional de extracção de charas consiste em esfregar as flores frescas entre as palmas das mãos e depois descolar a camada resinosa que foi gerada. Originalmente, as plantas a serem usadas não eram escolhidas, nem havia muito cuidado para evitar que a resina não se misturasse com qualquer resto de planta durante o processo. Actualmente, muitos produtores estão a melhorar este processo de extração e a selecção das plantas é meticulosa. As sementes seleccionadas em anos anteriores ou importadas por estrangeiros são cultivadas, as flores das plantas são manuseadas, enquanto as plantas estão ainda vivas e no momento exacto da maturação, com extrema delicadeza, para evitar a contaminação por qualquer tipo de impureza. O resultado final é um charas limpo, aromático e muito mais potente. Embora a produção de haxixe na Índia esteja a ser modernizada, este processo não é comparável ao que tem lugar em Marrocos, outro grande país produtor de haxixe, como vimos na edição anterior desta revista. Esta diferença é causada principalmente por um factor: o afastamento geográfico e cultural entre as zonas produtoras de charas e o Ocidente. Além disso, em comparação com Marrocos, a área de cultivo da canábis na Índia é muito menor, o que reduz a probabilidade de um produtor se atrever a experimentar novos métodos de extracção ou novas genéticas.

 

Himachal Pradesh e a canábis a grandes alturas

Embora a planta cresça naturalmente no norte da Índia, também existem cultivos, particularmente no estado de Himachal Pradesh. Muitos hectares são utilizados para cultivo neste território indiano dos Himalaias e as plantas estão frequentemente escondidas em vales inacessíveis, longe do alcance das autoridades. O vale do rio Parvati e a vila de Malana são os locais mais conhecidos para a produção de charas. Uma parte significativa dos seus habitantes vive, directa ou indirectamente, do cultivo da canábis e das visitas dos turistas que a vêm comprar. Malana é uma aldeia pequena e isolada com a sua própria língua, as suas próprias leis e o seu próprio sistema de governo. Além disso, os visitantes estrangeiros não são muito bem-vindos neste lugar especial. De facto, se um estrangeiro entrar na aldeia, não lhe é permitido tocar em ninguém, nem sequer em nenhuma das construções dentro da aldeia, sob ameaça de uma multa pesada e expulsão imediata. Um dos derivados da canábis mais caros do Ocidente, conhecido como creme de Malana, é produzido neste lugar curioso. 

 

A lei e o mercado

O charas produzido nas montanhas da Índia é ilegalmente exportado para o resto do país e para o estrangeiro. O preço aumenta quanto mais longe o produto se encontra do seu ponto de origem. Nos coffeeshops de Amesterdão, um grama de charas pode custar 10 vezes mais do que em Malana, por exemplo. Embora o comércio seja ilegal na Índia, muitas pessoas em áreas tradicionais de produção de haxixe ganham a vida com este produto, arriscando-se a penas de prisão por se dedicarem à mesma actividade dos seus antepassados. 

 

As autoridades policiais realizam algumas intervenções esporádicas, nas quais são destruídas algumas plantações e são presos alguns produtores. Isto não impede a continuação da produção de charas, com cada vez mais plantas a serem cultivadas todos os anos, escondidas nos vales das altas montanhas dos Himalaias. Desde 1985 que a venda da canábis e seus derivados, bem como o seu cultivo, têm sido considerados ilegais na Índia. A violação desta lei é punível com muitos anos de prisão e, no caso de se tratar de um estrangeiro, pode também levar à retirada do seu passaporte, tornando-lhe impossível a saída da Índia durante anos.

 

Antes de esta lei ter sido estabelecida, a canábis e os seus derivados eram vendidos legalmente na Índia e não era difícil encontrar dispensários de charas. Foi o governo dos EUA e a sua guerra contra as drogas que provocaram a mudança legislativa na Índia, que cedeu à pressão americana após anos de resistência política. As únicas excepções a esta lei são o bhang lassi e o bhang thandai, bebidas que contêm partes da planta e são utilizadas em festivais religiosos como o Holi. Há lojas específicas que vendem estas bebidas psicoactivas e alguns restaurantes até as incluíram discretamente nos seus menus.

 

Inúmeras pequenas aldeias dos Himalaias subsistem do cultivo da canábis e da subsequente

produção de charas. Não é fácil encontrar uma atividade económica alternativa e viável para estas pessoas: a agricultura convencional não proporciona rendimentos suficientes e oferecer serviços aos turistas é participar, directa ou indirectamente, no negócio do charas, uma vez que a maioria dos turistas que vêm para estes vales montanhosos o fazem atraídos por este haxixe. O governo está a trabalhar num novo quadro legal para estes cultivos, no qual grandes empresas podem requisitar licenças e produzir derivados da canábis para fins medicinais. O problema é que, como em muitas partes do mundo, esta legislação é feita à medida das grandes fortunas, ignorando o agricultor tradicional, ligado de forma física e espiritual a esta planta há gerações.

 

A Índia e a planta da canábis estão ligadas há milhares de anos e embora os novos tempos

representem uma ameaça à cultura existente à volta desta planta, a complexidade das suas tradições e a misteriosa energia que este país exala permitirá que muitos dos seus segredos e ritos sejam mantidos.

 

Boom Shankar!



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